domingo, 27 de março de 2011

Cyrus


Uma das palavras que mais se repete em Cyrus, de Jay Duplass e Mark Duplass, é “weird”, que, em inglês, significa “estranho”. E na maioria das vezes em que ela é usada, quem a pronuncia está se referindo à sinceridade com que outro personagem abordou um assunto. Mas estranho mesmo é a honestidade ou a sinceridade receberem esse adjetivo, enquanto a hipocrisia imposta pelas convenções sociais é o aceitável. E é assim que se desenrola o roteiro de Cyrus, baseando as ações de seus personagens na sinceridade, provando que nem sempre as máscaras sociais são a saída para as relações entre as pessoas.

A história engloba poucos personagens: John (John C. Reilly) e Molly (Marisa Tomei) se conhecem numa festa e ele vê nessa relação uma chance de recomeçar sua vida desde que se divorciou de Jamie (Catherine Keener), sete anos antes. Porém, para isso, John precisa se entender com o filho de Molly, Cyrus (Jonah Hill).

O filme inteiro é baseado nos diálogos entre seus personagens. Primeiramente entre John e Jamie. Em seguida, entre John e Molly. Na maioria das falas de John, ele deixa transparecer que não mascara a realidade para ficar numa situação mais confortável. Ele é espontâneo e prefere falar a verdade, o que às vezes tem um resultado ruim, como quando tenta se aproximar de umas garotas na festa de noivado de Jamie ou quando liga para ela de madrugada, mas, na maioria das vezes, sua honestidade, revelada pelo despojamento de suas palavras, trazem-lhe muitos benefícios, dentre os quais a relação com Molly.

Quando Cyrus entra em cena, porém, é mostrado o outro extremo dessa espontaneidade, que, se não respeitar a falta de intimidade dos interlocutores, pode constranger e demandar explicações embaraçosas. Mas John não quer permitir que Molly se vá de sua vida, por isso submete-se conviver com os problemas que Cyrus pode lhe causar.

Embora não aparente em suas atitudes ou palavras, Cyrus vê em John um entrave na relação com a sua mãe, e isso culmina em atitudes cujo resultado é a separação do casal. É nesse momento em que tanto Cyrus quanto John vão precisar encontrar um equilíbrio no uso de sua sinceridade, pois, se ela não existir, a relação tornar-se-á inviável, porém, se existir em excesso, inviabilizará a convivência.

Exemplo disso é quando Cyrus decide morar sozinho e John diz a Molly que tudo vai ficar bem. Isso parece distanciá-los, pois é o que qualquer um diria, mas, quando ele percebe que pode ser sincero com ela e diz que não, que a decisão de Cyrus foi errada e que as coisas não vão ficar bem, ela diz que se sente muito melhor e abre um sorriso.

Dessa forma, os diretores e roteiristas Jay Duplass e Mark Duplass, através de uma história simples, dão uma lição e tanto numa sociedade que, como diria o filósofo e ensaísta Luiz Felipe Pondé, precisa da hipocrisia para funcionar. Até certo ponto, sim, afinal ela serve como defesa, mas quando vira regra de conduta, pode nos tornar vazios. Por isso, os personagens de Cyrus parecem “estranhos”, porque são sinceros e espontâneos, despindo-se de qualquer amarra imposta por uma sociedade que se esconde atrás de um véu chamado hipocrisia.

Filipe Teixeira

sábado, 26 de março de 2011

VIPs


Existem filmes que se caracterizam por uma qualidade específica: o roteiro, a fotografia, a direção, os efeitos etc. No caso de VIPs, de Toniko Melo, o destaque são as atuações. Wagner Moura e Gisele Fróes dão ao filme uma dimensão muito maior do que ele alcançaria sem eles nos papéis centrais. Além disso, as possíveis raízes do comportamento delinquente do protagonista são sugeridas de uma maneira tão sutil, que a obra apresenta uma profundidade impossível de ser conseguida apenas pela ação.

O enredo é centrado na história de Marcelo, um jovem obcecado pela figura de um pai que nunca teve e pela idéia de ser piloto de avião. Nessa busca, ele aplica golpes e utiliza identidades falsas, como a do filho do dono da Gol Linhas Aéreas, aparecendo inclusive em um programa de TV.

A partir da história real de Marcelo Nascimento da Rocha, que em 2001 apareceu no programa de Amaury Jr. passando-se por Henrique Constantino, herdeiro da Gol, os roteiristas Bráulio Mantovani (de Cidade de Deus) e Thiago Dottori criaram uma nova história e, consequentemente, um novo personagem. Esse personagem, multifacetado que é, como os créditos iniciais sugerem, exige um ator que consiga suprir as necessidades de cada identidade assumida por ele. E Wagner Moura caiu como uma luva no papel.

Além de filho de empresário, Marcelo apropria-se de outras identidades, numa tentativa de encontrar a sua própria – como revelou o diretor Toniko Melo –, ou de apagá-la definitivamente, como por diversas vezes o próprio personagem dá a entender. Assim, de golpe em golpe e valendo-se de sua astúcia, o protagonista dá ação à trama, que é acompanhada de uma trilha sonora espetacular, assinada por Antonio Pinto, de Central do Brasil, de Walter Salles, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, e O Amor nos Tempos do Cólera, de Mike Newell, que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro. Destaque também é a montagem, que dinamiza o enredo e mantém a ação viva durante os pouco mais de 90 minutos de projeção.

Na direção, o estreante em longas Toniko Melo conduz com firmeza e sem excessos as ardilezas de Marcelo, fazendo, inclusive, uma autocitação quando em uma cena o protagonista assiste ao clipe da música “Será”, da Legião Urbana, dirigido por ele nos anos 80.

Todas essas qualidades já seriam suficientes para caracterizar VIPs como uma produção de destaque, porém o que a eleva de patamar são as atuações. Wagner Moura esbanja versatilidade ao assumir as várias faces de seu personagem, embora nos lembre em vários momentos que essas várias faces são na verdade máscaras de uma pessoa que não se encontrou ainda e que procura, em outras vidas, um rumo para a sua. Com uma participação menor, porém muito competente, Gisele Fróes é Silvia, a mãe de Marcelo, que não se apequena diante da genialidade de Wagner Moura.

As múltiplas personalidades assumidas por Marcelo, além da figura paterna idealizada, são conseqüências da dúvida de sua mãe sobre quem seria seu verdadeiro pai, pois, já na primeira cena, ela desdobra uma foto tirada numa festa de Carnaval em que está acompanhada de dois homens mascarados. Dessa cena, demembram-se duas possíveis interpretações: a metáfora da máscara, que, substituída por outra, faz com que quem a use assuma uma nova aparência, uma outra identidade; e a sugestão lançada de que Marcelo foi gerado na noite da foto, embora Silvia não esteja certa de quem seja o verdadeiro pai de seu filho, podendo ser qualquer um dos homens que a acompanham.

Assim, tanto o público interessado em ver um filme cuja ação é constante quanto quem deseja refletir a respeito das origens de uma personalidade perturbada encontra em VIPs uma ótima opção.

Filipe Teixeira

quarta-feira, 23 de março de 2011

Bravura Indômita


Joel e Ethan Coen voltam ao gênero western desde o premiado Onde os Fracos Não Têm Vez, de 2007. Após Queime Depois de Ler e Um Homem Sério, comédias de humor negro lançadas, respectivamente, em 2008 e 2009, os irmãos Coen realizam desta vez uma refilmagem de Bravura Indômita, de 1969, dirigido por Henry Hathaway e protagonizado por ninguém menos que John Wayne, no papel do federal Cogburn, que, na produção atual, foi interpretado por Jeff Bridges.

O filme conta a história de uma garota de 14 anos, Mattie Ross (Hailee Steinfeld), que contrata por cem dólares o xerife (ou marechal, ou comissário, ou federal) beberrão Reuben “Rooster” Cogburn (Jeff Bridges) para vingar a morte de seu pai, assassinado por seu empregado, Tom Chaney (Josh Brolin). Porém a garota exige acompanhá-lo para certificar-se de que o serviço será realizado. Ao longo da jornada, junta-se a eles o Texas Ranger LaBoeuf (Matt Damon), que também está à procura de Chaney, embora por outros motivos.

Não é à toa que os irmãos Coen, desde Barton Fink - Delírios de Hollywood, são lembrados pelas principais premiações do cinema mundial, afinal eles aparecem com pequenos grandes filmes regularmente. Isso: pequenos grandes filmes, pois são aparentemente muito simples, como Fargo, Um Homem Sério, O Homem que Não Estava Lá, mas ao final percebe-se a grandiosidade de cada uma dessas produções, devido aos temas trabalhados – como a ganância, a futilidade, a traição – e à maneira segura como as tramas são conduzidas, principalmente os diálogos. Isso faz com que os filmes dos irmãos Coen figurem nas listas de dez mais de todo ano.

Com Bravura Indômita acontece o mesmo. É um filme despretensioso, um western como qualquer outro. Não há nada de novo: um narrador para apresentar e encerrar a trama, um fora-da-lei, uma vítima com desejo de vingança, um herói que se recusa (mas que depois aceita a tarefa), uma perseguição, alguns pontos de virada, o martírio do herói e, enfim, todos ficam felizes. Além disso, a história é repleta de Deus ex-machina, principalmente quando se aproxima do final. Somado a isso há o humor, marca característica de Joel e Ethan, muito bem utilizado na cena em que Cogburn e LaBoeuf disputam tiro ao alvo com rosquinhas de milho.

Mas até para fazer algo comum é preciso talento, e nisso os irmãos Coen não economizam. Desde a escolha do elenco – com o oscarizado Jeff Bridges no papel principal, a novata em longas Hailee Steinfeld e os sempre ótimos Josh Brolin e Matt Damon como coadjuvantes – até a escolha da equipe técnica – com destaque para seu diretor de fotografia de longa data Roger Deakins, que consegue secar nossa garganta com as imagens áridas do Velho Oeste.

O resultado, portanto, só pode ser uma grande obra, pois é conduzida por grandes artistas e realizada de maneira a cumprir aquilo a que se propõe. Não há excessos na produção, pois não são ultrapassados os limites do gênero e da própria trama, e é exatamente o respeito a esses limites que torna grandes os aparentemente pequenos filmes dos Coen.

Filipe Teixeira

segunda-feira, 21 de março de 2011

Cópia Fiel

A expressão “cinema de arte” sempre me soou controversa, pois, a partir dela, podemos concluir que alguns filmes são “superiores” a outros e só eles podem ser considerados arte. Isso ainda se torna mais complicado quando tentamos definir o que é arte, uma discussão que nunca acabará, pois a arte é a transfiguração da realidade que rodeia um artista feita por esse mesmo artista, e a todo momento a realidade se transforma. Mas é inevitável classificar o filme Cópia Fiel, do iraniano Abbas Kiarostami, como “de arte”, pois ele incomoda, não passa despercebido, pelo seu conceptismo e pelas suas figuras de linguagem, que, a priori, podem confundir o leitor – como em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de Michael Gondry, ou Sinédoque, Nova York, de Charlie Kauffman (que escreveu o roteiro de Brilho Eterno…) –, mas se explicam pelo contexto em que se inserem as várias camadas de interpretações que ele apresenta.

James Miller (William Shimell) é um escritor que está na Itália para falar sobre seu mais novo livro, Cópia Fiel, que aborda a questão do valor da cópia na arte. Ele então é convidado por Elle (Juliette Binoche) – dona de uma galeria de arte – para apreciar o lugar. Durante a caminhada, eles param para tomar o café e, em determinado momento, James sai para atender o telefone. Enquanto isso, Elle conversa com uma garçonete, que pensa que eles são marido e mulher. Ao sair de lá, eles agem como tal e discutem as desventuras de um relacionamento que parece estar se deteriorando.

As expressões de dúvida e até de descontentamento geradas por esse filme estavam estampadas nos rostos dos espectadores ao fim da sessão, justamente porque ele não se prende ao começo-meio-e-fim tradicional hollywoodiano. Não que ele seja melhor por isso, mas ele continua com o espectador, que se pergunta se deixou de prestar atenção em algum detalhe, pois, aparentemente, a história (o comço-meio-e-fim) não faz sentido.

Emoldurados pela belíssima fotografia de Luca Bigazzi, James e Elle passeiam por Lucingnano, uma comunidade localizada na Toscana, e dialogam pelos 100 minutos de filme. É como se fosse uma refilmagem madura de Antes do Amanhecer, de Richard Linklater, ou Apenas o Fim, de Matheus Souza, ou Dois Dias em Paris, de Julie Delpy. Essa é a primeira tirada metalinguística do filme: o valor da cópia na arte, tema do livro escrito pelo protagonista, pois questões sobre a originalidade da obra de vários artistas de valor incontestável, como Gauguin e Van Gogh; Picasso e Matisse; Claudel e Rodin, para citar alguns, foram lançadas, embora eles continuem a ser referência na história da arte.

Na primeira parte do longa, até chegarem ao café, os temas são bastante impessoais, como o fato de que o homem esquece que foi feito para a diversão e o prazer; e a característica própria da arte de ser interpretada a partir de diversos pontos de vista. Esses diálogos são travados num inglês polida e friamente britânico, como James aparenta ser. Aqui temos um mergulho em mais uma camada interpretativa da obra, pois a garçonete interpretou o casal como se eles fossem marido e mulher, então eles assumem esse papel na segunda metade, que é repleta de espelhos, sugerindo exatamente as várias superfícies da realidade.

Enquanto James está do lado de fora atendendo o telefone, Elle e a garçonete conversam em italiano, a língua de um povo conhecido por seu sangue quente, sua paixão, características que a protagonista revelaria a partir de então, pois suas primeiras lágrimas caem enquanto está no café. Daí o par de protagonistas assume a interpretação da garçonete e age como um casal em crise: ela, apaixonada e desesperada por ver seu casamento se esvair; ele, frio e distante por não mais acreditar no romantismo, que, mesmo assim, permanece vivo na doçura da língua francesa utilizada por Elle em diversos momentos. A utilização desses três idiomas para conduzir a trama atesta, portanto, a dificuldade desse casal em se comunicar, como se fosse uma Babel em minitura.

Mas tudo isso não se sustentaria sem as competentes atuações de William Shimell e Juliette Binoche, conduzidas pelo experiente Abbas Kiarostami, que realiza takes longos de diálogos que em nenhum momento soam desnecessários ou forçados. Além disso, os close-ups dos protagonistas trazem o espectador para dentro da obra, como se fosse a última parte dessa grande metonímia em que se configura esse filme, que, definitivamente, é “de arte”.

Filipe Teixeira

sexta-feira, 18 de março de 2011

O Discurso do Rei

Vencedor do Oscar 2011 nas principais categorias – melhor filme, melhor diretor (Tom Hooper), melhor ator (Colin Firth) e melhor roteiro original (David Seidler) – e indicado em mais 8 categorias, O Discurso do Rei é um filme impecável. Tem todas as características de um grande filme: roteiro bem montado, direção precisa, atuações seguras, fotografia e figurino limpos etc. É um filme que não pede ao espectador para olhar no relógio quanto tempo falta para acabar a sessão. Não porque empolga pela ação, mas porque não causa enfado com diálogos longos nem com paradas para explorar a trilha sonora – que é bem discreta, mas de qualidade.


A despeito da qualidade cinematográfica, alguns historiadores reclamaram que o filme não retrata de maneira fiel a história, mas estamos aqui para falar da qualidade da obra de arte, não da sua fidelidade à história real – embora esse tipo de crítica seja recorrente quando se trata de filmes baseados em fatos reais ou em obras literárias.


Filmes sobre a realeza britânica, volta e meia, aparecem – e aparecem bem –, como os recentes A Rainha e Elizabeth – A era de ouro. O monarca escolhido desta vez foi George VI, pai de Elizabeth II, a atual rainha da Inglaterra (vivida em A Rainha pela premiada Helen Mirren). Tentando curar seu problema de gagueira, o ainda príncipe Albert (Colin Firth) – Bertie para a família –, segundo na linha de sucessão ao trono, procura a ajuda de Lionel Logue (Geoffrey Rush), uma espécie de fonoaudiólogo da época. O príncipe Albert, primeiramente, desconfia dos métodos nada ortodoxos de Lionel, mas quando seu irmão, Eduardo VIII (Guy Pearce), abdica do trono para casar-se com uma americana divorciada, não resta alternativa ao príncipe senão confiar em Lionel, pois cabe a Albert assumir o trono da Inglaterra. E um rei, mesmo gago, precisa fazer discursos.


Muitos são os eventos que se sucedem durante as quase duas horas de projeção, mas a montagem linear e as legendas para situar o espectador no tempo e no espaço não deixam lacunas a respeito do encadeamento desses eventos, que desembocam na prova de fogo do agora Rei George VI: o primeiro discurso como monarca britânico em pleno início da Segunda Guerra Mundial.  Quando Colin Firth e Geoffrey Rush contracenam, temos as melhores sequências, tanto nas cenas mais dramáticas quanto nas mais cômicas. Guy Pearce, que escolhe seus papéis a dedo, e Helena Bonham Carter, a versátil e inesquecível Marla Singer de Clube da Luta, completam o elenco principal, ao redor do qual a história é conduzida.


A fotografia e o figurino mostram uma Londres nublada e opaca por uma densa neblina, talvez numa referência aos tempos sombrios de guerra que viriam. Tudo parece estar úmido e triste, dando o tom da tensão vivida pelo futuro rei.


E se há um problema em O Discurso do Rei é a forma nada original como a história é contada. Como foi dito acima, recebeu os principais Oscar de 2011, pois, reitero, é um filme impecável, mas só o é justamente porque não corre o risco de ser inesquecível. Está tudo no lugar, e da maneira como normalmente encontramos, como em Uma Mente Brilhante, O Paciente Inglês, Coração Valente, filmes que não coincidentemente levaram o maior prêmio da Academia.


Filipe Teixeira