segunda-feira, 30 de maio de 2011

Santa Paciência

Fazer comédia com religião é sempre perigoso, principalmente se a religião for o islamismo. Agora fazer comédia misturando islamismo e judaísmo é, como diria Raul Seixas, um perigo perigosíssimo. Esses são o gênero e o tema, respectivamente, de Santa Paciência, de Josh Appignanesi, que conta a história de Mahmud Nasir (Omid Djalili), um muçulmano que descobre ser judeu de nascimento.

Embora seja um tema espinhoso, o diretor e, principalmente, Omid Djalili souberam conduzir a história de maneira que não parecesse um deboche. Há diversas ironias – como o fato de que tanto os judeus quanto os muçulmanos sempre usam “Jesus!” como interjeição – e toques de comédia pastelão – quando Mahmud tenta subir em um palco e não consegue por ser gordo e sedentário – que dão a leveza necessária para tirar toda tensão em torno do assunto.

Mahmud é um homem que nasceu em berço de tradições rígidas, mas que, influenciado pelo modo de vida ocidental – o filme se passa na Inglaterra –, abranda certos ensinamentos que estão no Corão e diz inclusive que é um religioso moderado. O problema é quando seu filho, Fahad (Ravin J. Ganatra) se apaixona pela enteada de um líder muçulmano extremista, então, para que seu filho possa casar-se, ele precisa provar que é um fiel seguidor de Alá e que obedece rigorosamente as escrituras sagradas.

Mesmo relutante a princípio, Mahmud aceita o pedido do filho, mas, na mesma época, descobre que na verdade foi adotado por muçulmanos e que seus pais biológicos eram judeus. Tentando encontrar suas raízes, o protagonista encontra no taxista judeu-americano radicado na Inglaterra Lenny Goldberg (Richard Schiff) o parceiro ideal para encontrar o judeu que habita em si. Assim como Mahmud, Lenny é alguém que não segue rigorosamente os preceitos de sua religião.

Existe toda uma mensagem de paz e tolerância nas entrelinhas de cada cena, mas nada exacerbado, para não tirar o tom muito bem dosado de comédia, que se confirma na sátira ao modo como os membros de cada religião tratam os da outra. Quando Lenny descobre que Mahmud é judeu, por exemplo, ele diz: “Bem-vindo à conspiração mundial”. Todas essas qualidades são motivos suficientes para perdoar o final forçado, que usa quase que literalmente da técnica do deus ex-machina para que a trama se resolva.

Santa Paciência (apesar da tradução não muito feliz do título original The Infidel) é, portanto, um ótimo filme e deve ser visto, pois trata de maneira leve um tema com o qual é bem difícil de lidar.

Filipe Teixeira

sábado, 28 de maio de 2011

O Último Voo do Flamingo


A descolonização africana e os desdobramentos que esse processo causou, como ditaduras, guerras civis e a deplorável condição humana do continente negro, já foram exaustivamente abordadas pelo cinema americano. Com O Último Voo do Flamingo, de João Ribeiro – adaptado do romance de Mia Couto – temos a oportunidade de conhecer parte dessa história pelo olhar africano.

O enredo se dá em Moçambique pós-guerra civil. Após uma explosão misteriosa que deixa como vestígios um pênis decepado e um capacete da ONU, o major Massimo Risi (Carlo D’Ursi), das Nações Unidas, viaja à vila fictícia de Tizangara para investigar o caso. Lá ele se depara com os costumes locais, que envolvem o misticismo dos antigos e a corrupção dos novos, que querem tomar o poder.

A África, primitiva e esquecida, que é mostrada se assemelha àquela de O Jardineiro Fiel, de Fernando Meireles, Diamante de Sangue, de Edward Zwick, e Hotel Ruanda, de Terry George, para citar alguns exemplos. Mas o olhar sincero de um diretor africano e as interpretações cruas – embora nem sempre convincentes – dos atores locais dão um toque especial à obra. Um exemplo de como o lugar é atrasado é quando, para tomar um banho, o major precisa esperar o dia seguinte para que um moleque vá buscar um balde cheio no rio.

A brasileira Adriana Alves, no papel de Ana Deusqueira, é o ponto de confluência entre os elementos sobrenaturais que permeiam o filme e a dura realidade do lugar, revelada pela prostituição e pela corrupção. Já a personagem Ermelinda (Cândida Bila) é a metáfora do misticismo, que conduz o cético major a aceitar e até a praticar a religiosidade do lugar.

A figura do herói infalível se revela em Massimo, que conduz a trama até a sua resolução, embora a mensagem do final talvez não tenha sido passada da melhor forma, principalmente porque em muitos momentos o tom de comédia destoa da gravidade do tema.

O filme, enfim, vale pelo inusitado, pela novidade, pois não é sempre que temos a oportunidade de ver a África pelo olhar de um diretor africano, baseado em uma obra literária de um escritor africano. Portanto, a despeito das comparações com o livro – que, segundo alguns críticos, está muito além da obra cinematográfica – o filme agrada bastante e merece ser visto.

Filipe Teixeira

As doze estrelas


Alguns filmes brasileiros pecam por não parecerem filmes, e sim peças de teatro filmadas. Os atores interpretam como se estivessem num palco, orientados por um diretor que deve, claro, conduzi-los dessa maneira. Mas esse não é o principal nem infelizmente o único defeito de As Doze Estrelas, de Luiz Alberto Pereira. O filme é uma sucessão de equívocos.

A história não é nada verossímil, mas poderia ter sido transformada numa boa comédia: Herculano (Leonardo Brício) é um astrólogo contratado por um estúdio para entrevistar as atrizes que estrelarão a próxima novela. Cada uma é de um signo e, quando aparecem, agem de acordo com a descrição que lhes cabe no zodíaco. O astrólogo “entrevista” cada uma delas, que são na verdade caricaturas do signo que representam: desde as atitudes até os nomes. Nada soa natural. A impressão é que as atrizes estão lendo o horóscopo do jornal de tão pouco espontâneas que são. Suas ações apenas sublinham as características de seu signo e desafiam o poder interpretação do espectador.

Esse fato remete ao romance Praticamente Inofensiva, de Douglas Adams, quando o narrador critica o fato de as pessoas acreditarem que “blocos de pedra rodopiando no espaço” possam saber algo sobre o seu dia. No filme, não só o dia das atrizes, mas cada gesto, cada atitude, cada passo que elas dão são ditados pelos aspectos referentes a seu signo. O ponto culminante dessa falta de espontaneidade e criatividade é no signo de gêmeos, em que Mylla Christie interpreta duas atrizes gêmeas cujo sobrenome é Bis.

Em alguns momentos, o filme ganha tons surreais quando o astrólogo passa a sofrer a influência da casa do zodíaco que está investigando. Aí se evidencia outro defeito gritante do filme: a escolha de Leonardo Brício para protagonista. O único momento em que seu personagem convence é quando o ator mirim Max Weiss o interpreta, numa referência forçadíssima ao signo de câncer.

Outra inverossimilhança gritante é o fato de que a comunicação entre os personagens se dá por telegramas, embora todos possuam celular. Juntam-se a isso tudo a forma descarada como os patrocinadores são apresentados e o resultado é um filme ruim, dispensável, que nos remetem àquela pergunta: “Como permitiram que isso acontecesse?”

Filipe Teixeira


domingo, 15 de maio de 2011

Chuva

Lançado em 2008, Chuva (de Paula Hernández) chega aos cinemas brasileiros três anos depois. Como a expectativa é a mãe da decepção, essa demora seria um grande risco, principalmente por ser o primeiro longa de ficção da diretora depois do premiado Herencia, de 2001. Mas, apostando numa linha narrativa segura, mesmo que comum, o filme se mantém firme e, embora não empolgue, não desagrada, a não ser pelas gags inoportunas que destoam do tom dramático.

Chove torrencialmente em Buenos Aires, Argentina. O trânsito está caótico, e Alma (Valeria Bertuccelli) está presa em um gigantesco engarrafamento. Subitamente, Roberto (Ernesto Alterio) entra no carro de Alma. A partir desse encontro, a vida dos dois será destrinchada e seus dramas revelados aos poucos. Vários detalhes, como o vidro quebrado do carro de Alma ou o corte na mão de Roberto são decifrados ao longo da projeção (às vezes recorrendo a flashbacks), o que prende a curiosidade do espectador, mas os muitos silêncios entre uma revelação e outra deixam o filme desnecessariamente lento.

Ambos os protagonistas vivem momentos epifânicos em suas vidas. Alma acabara de sair de casa e fez de seu carro casa; Roberto viera da Espanha, pois seu pai está morrendo em Buenos Aires. Os conflitos pelos quais ambos passam os deixam fragilizados e eles vêem no outro uma válvula de escape, em todos os sentidos: tanto para se descontraírem quanto para despejarem no outro suas frustrações.

A chuva que cai por vários dias na cidade reflete o momento de cada um. Não é uma metáfora profunda, mas a forma como se coloca não é acintosa, portanto, para um espectador menos atento, só está chovendo. Porém as cenas finais do filme mostram que a tempestade que escurecia os corações dos protagonistas se desfez. Cada um encontra a cura de suas feridas, embora ainda precisem de um tempo para cicatrizá-las.

O abandono é o tema central da obra. Enquanto Alma larga o marido, Roberto revela-se desamparado pelo pai que está morrendo. Estando em situações opostas, ao longo da trama eles constroem um modo mais brando de ver suas próprias condições. A chuva atua como um termômetro da relação dos dois, pois aumenta com a tensão entre eles e diminui quando se entendem.

Como diria a música dos Engenheiros do Hawaii, os personagens de Chuva estão entre a solidão e a cidade. Literalmente. Pois a relação entre eles começa num engarrafamento de uma metrópole e se desenvolve nas ruas, nos cafés e nos restaurantes dessa mesma metrópole. Contudo o que se apreende de cada um deles é quão sozinhos eles são.

Filipe Teixeira

domingo, 8 de maio de 2011

127 Horas

As cenas iniciais de 127 Horas, de Danny Boyle, lembram o ótimo Trainspotting, do mesmo diretor. Enquanto surgem os créditos, são exibidas multidões: a largada de uma corrida de rua, uma mesquita em horário de oração, uma estação de trem na hora do rush etc. Então a tela é dividida em três e as cenas descritas anteriormente são mescladas com as em que o alpinista Aron Ralston (James Franco) prepara-se para sair de casa. Seguem-se mais algumas cenas até que Aron desce de sua caminhonete já montado numa mountain bike em meio a Canyonlands, no estado americano de Utah. Ele cai, levanta, pedala mais um pouco, amarra a bicicleta em uma árvore e segue caminhando pela infinitude de areia e pedra em tons de laranja até encontrar duas garotas perdidas, Kristi (Kate Mara) e Megan (Amber Tamblyn), para as quais se oferece de guia. Após um tempo com as garotas, ele se despede e continua sua caminhada.

A agilidade da edição, de Jon Harris, faz com que os fatos narrados no parágrafo anterior sejam apresentados em muito pouco tempo de filme, principalmente porque são acompanhados pela eletrizante trilha assinada por A. R. Rahman, que também compôs a de Quem Quer Ser um Milionário?, também de Boyle. Mas, muito além das canções que servem de fundo para as cenas, os outros componentes da trilha sonora foram encaixados com tanta competência que potencializam as sensações do protagonista, trazendo o espectador cada vez mais para dentro da história. (Só não exemplifico porque aí já seria spoiler).

Mas 127 Horas é muito mais que isso. O enredo concentra-se na parte em que Aron prende o braço direito numa rocha após cair numa fenda. O ritmo passa a ser completamente diferente. A ebulição de sensações dá lugar ao drama do protagonista, que está no meio do nada, quase sem comida e sem água. A ágora dá lugar ao claustro. As multidões das cenas iniciais dão lugar à solidão do deserto. Um desafio para o diretor, mas, como Hitchcock – que filmou Disque M Para Matar em um quarto e disse que faria um filme dentro de uma cabine telefônica, se fosse necessário – Danny Boyle não perde a mão e explora cada milímetro do resumido “cenário”, presenteando-nos com um drama extraordinário.

A experiência de Aron em alpinismo contribui para que ele sobreviva às condições em que se encontra, mas sua mente começa a lhe trair assim que fica debilitado devido à falta de água e de comida. Nesses momentos, mais uma vez se sobressaem a trilha e a edição, somando-se à excelente fotografia de Enrique Chediak e Anthony Dod Mantle (que assina também a fotografia de Quem Quer Ser um Milionário?).

Levando-se em conta as qualidades técnicas e artísticas, 127 Horas já seria um filme espetacular, mas a substância deste filme chama-se, na verdade, James Franco. Na maior parte do filme, seu corpo está praticamente parado e sua atuação concentra-se nas expressões de seu rosto. A euforia, o desespero, a dor, a tristeza, a saudade, enfim, todas as suas sensações envolvem o espectador, dada a competência com que são representadas pelo ator, que ganhou o Independent Spirit Awards e concorreu a vários outros prêmios.

Assim como Clint Eastwood e Steven Spielberg, Danny Boyle realiza grandes filmes com assuntos e estruturas narrativas diferentes, embora, obviamente, sua marca fique clara nas eletrizantes sequências e nos seus protagonistas que encontram a redenção (ao contrário de diretores como Almodóvar e Tarantino, que são também geniais, mas cujos filmes parecem partes de uma mesma grande obra). Com 127 Horas, portanto, o diretor entra definitivamente, para a categoria de diretores não só geniais, mas versáteis.

domingo, 1 de maio de 2011

Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano

Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano, primeiro longa-metragem de Beatriz Seigner, conta a história de três amigas que vão para a Índia no intuito de atuar na indústria cinematográfica indiana, a maior do mundo, que produz cerca de mil filmes por ano. A história nasceu de uma conversa da diretora com Paula Braun e Lorena Lobato, que compõem o elenco (que conta ainda com Nataly Cabanas) e resultou na primeira co-produção Brasil-Índia, cujo orçamento foi de apenas US$ 20 mil.

O baixo custo da produção contribui para o tom intimista da obra. Enquanto as protagonistas vão em busca de um produtor de cinema com o qual uma delas teve um breve contato, elas conhecem os costumes do lugar. Em alguns momentos, o longa chega a ter um aspecto de documentário, pois os muitos indianos que aparecem no filme não eram figurantes, suas reações eram espontâneas ao contato com a câmera.

Espontâneas também são as falas das personagens. Embora haja uma linha narrativa, os diálogos e as marcações são improvisados, o que nem sempre resulta positivamente, mas retrata o estado de desorientação das personagens, que tem sua mais clara representação quando elas têm que escolher entre pegar a estrada da direita ou da esquerda, mas não sabem para qual lado devem ir.

A diretora do filme, que também assina o roteiro e a fotografia, morou na Índia e produziu e roteirizou documentários dirigidos pelo cineasta indiano Ram Prasad Devineni. Talvez dessas experiências tenha surgido a idéia de dar às personagens os sobrenomes dos heterônimos de Fernando Pessoa (Caeiro, Reis e Campos), para que cada uma seguisse os vários caminhos que possivelmente Beatriz Seigner pensou em seguir.

Ao longo da narrativa, surgem alguns insights filosóficos, como “a dor é o que une todos os povos” ou “a estagnação (e não a guerra ou a violência) é o oposto da paz, segundo o I-Ching”. Mas na maioria das vezes não soam naturais, a não ser quando essas conclusões são resultado do choque cultural entre as personagens – ocidentais, materialistas – e o povo indiano – extremamente espiritual. Um exemplo é quando elas estão filmando um ritual religioso e um habitante local pergunta por que. Uma delas responde que é para eternizar o momento. Então o popular responde: “Isso acontece há milhares de anos, já é eterno”.

Bollywood Dream lembra dois ótimos filmes recentemente realizados na Índia por ocidentais. O primeiro deles e cuja referência é mais perceptível, é Viagem a Darjeeling, de Wes Anderson, que trata de uma viagem espiritual de três irmãos pelo país de Gandhi; o segundo é Quem quer ser um milionário?, que deu a Danny Boyle o Oscar de melhor diretor em 2009 e mostra o lado pobre desse país cuja economia é considerada a quarta maior do mundo. A vantagem do filme de Beatriz Seigner, entretanto, é que, com um orçamento infinitamente menor, evidencia essas características com a mesma sinceridade.

Filipe Teixeira