sábado, 23 de abril de 2011

Amor?

Ainda podemos dar o nome de amor ao sentimento que une duas pessoas cuja relação é pautada pela violência? Essa é a questão lançada pelo filme Amor?, de João Jardim. A partir de oito depoimentos, interpretados por atores muito conhecidos do cinema e da TV brasileira, o diretor monta um painel de histórias amorosas em que a violência surge como fator eminente.

A decisão por colocar atores no lugar das pessoas reais veio quando o diretor se deu conta de que os entrevistados pudessem voltar atrás antes de o filme estrear ou, pior, que as pessoas citadas nas entrevistas pudessem inviabilizar a produção judicialmente.

Não poderia ter tomado melhor decisão. Por dois motivos: primeiro por que, sendo os atores muito conhecidos, as histórias tornam-se universais, o que não aconteceria se os depoimentos fossem narrados pelos personagens reais, que fatalmente particularizariam seus dramas; e segundo pela qualidade das atuações, principalmente de Lilia Cabral, Claudio Jaborandy e Julia Lemmertz. O elenco é composto, ainda, por Letícia Collin, Eduardo Moscovis, Fabiula Nascimento, Sílvia Lourenço, Mariana Lima e Ângelo Antônio.

Então deparamo-nos com outra questão: quando termina o documentário e começa a ficção? É um risco enquadrar uma obra de arte dentro de um gênero, de uma escola, de uma estética. Frida Khalo, por exemplo, sempre negou o rótulo de surrealista, embora sua obra tenha todas as características dessa vanguarda. Rodrigo Amarante e John Ulhoa, das bandas brasileiras Los Hermanos e Pato Fu, respectivamente, já disseram em programas de TV que o rótulo cabe ao crítico, não ao artista. Amor? nos traz essa questão. Embora caracterizado como documentário, o que vemos são atores representando personagens.

Entre uma história e outra, que começam com um letreiro mostrando o nome do personagem da vez, há cenas que, na sua maioria, envolvem água, passando uma sensação de limpeza, de que aquelas pessoas agora estão livres (limpas) da violência que, por muito tempo, fez parte de suas vidas. Quando não há cenas com água, há a nudez, ou a seminudez, representando a fragilidade dos personagens ou, mais ainda, a sinceridade com que expõem suas vidas, afinal a verdade deve ser despida de pudores, preconceitos ou amarras quaisquer. E em alguns desses intervalos, ironicamente, a trilha é o clássico "Carinhoso", de Pixinguinha e João de Barro.

O tema não é nada original, tendo sido abordado à exaustão por diversas telenovelas brasileiras (A Favorita, Senhora do Destino, Mulheres Apaixonadas e Rei do Gado, para citar algumas), mas a forma escolhida para se contarem essas histórias foi muito interessante e livrou o filme de qualquer clichê. E mesmo sendo um tema já diversas vezes trabalhado, algumas de suas nuances ainda chocam, como quando Alice (Julia Lemmertz) confessa que apanhava do marido, mas só o deixou quando ele a traiu com outra mulher; ou quando Cláudia (Mariana Lima) revela que aos 14 anos teve um relacionamento com um homem violento, mas que entendia a violência (gerada pelo ciúme) como uma prova de amor; ou quando Fernando (Eduardo Moscovis) declara que ri quando se lembra de seu pai batendo na sua mãe pela primeira vez e a dentadura dela se quebrando, pois, segundo ele, toda tragédia tem um lado cômico.

O grande trunfo de Amor? é a imparcialidade. Não há maniqueísmo. Os que praticam a violência não são demonizados; os que a sofrem não são vitimados. Isso porque é um filme que conta histórias de amor, mesmo que marcadas (fisicamente) pela violência. Daí o ponto de interrogação. Quem poderá dizer que os envolvidos nessas histórias não se amavam? O diretor se exime de responder e joga a questão para o outro lado da tela, deixando estáticos os espectadores durante os 100 minutos de filme (melhor chamar assim, pois eu também não vou me atrever a enquadrá-lo num gênero).

Filipe Teixeira

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